A tal da “linguagem neutra” incorreta: o ‘x’ além de uma simples neutralidade

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Em defesa do uso do ‘x’ político, linguístico e na história…

Você consegue imaginar por qual razão o ‘x’ incomoda tanto - fora a questão de não ser uma vogal? Bom, nesses últimos anos eu particularmente entendi, e estamos num momento muito propício para discuti-la… eu explico. 

Tem havido um debate entorno da “linguagem neutra” que se trata de acessibilidade, e sobre como algumas formas desse tipo de linguagem são inacessíveis. E a partir disso um enquadramento e sistematização dessa língua. Já vamos entender o por quê. Para não misturar as coisas, eu particularmente irei utilizar outras maneiras de se referir à essa tal “linguagem neutra”, como “neolinguagem” e “neopronomes”, que também são termos comum ao tema. Vamos lá?

Linguagem, antes de gênero e depois 

(se esse tópico não lhe interessar pule para o próximo onde aprofundamos a crítica ao X - que trata-se mais de uma falta de crítica)

Pronomes que são considerados masculinos em uma língua podem ser neutro em outra língua, cultura e afins. Como por exemplo o neopronome “elle” no espanhol, que no francês tradicionalmente se trata um pronome classificado como feminino. O próprio termo “neopronome” aqui deve ser interpretado com muito cuidado, porque o que hoje parece ser um novo pronome para nós, é algo que já existe há muito tempo em nossa língua ou em outra. Como é o caso, a exemplo novamente do pronome “elle”, que no velho português possuía o significado de “ele” com um simples L dobradiço, comum no português obsoleto. Enquanto no francês obsoleto, “ele” significava “ela” ( atual “elle” no frânces), mostrando que também esse vício de marcar uma linguagem em um gênero é algo cultural. “Pronomes neutros” em essência são neolinguagem. Logo, quando falamos em neutro aqui, subentendemos que estamos falando de neopronomes. Ou seja, neo = novo. Mas nem sempre como visto antes. por neopronome também podemos entender uma forma de linguagem obsoleta e ressignificada. 

Um ponto importante nessa pequena introdução, é a questão de separar linguagens em “neutras, femininas e masculinas” como dito antes. Essa forma de classificação pode ser um possível problema dependendo da maneira como esses conceitos são expressos. Devemos lembrar que o debate por uma linguagem mais inclusiva e acessível está pondo justamente em cheque a mesma gramática normativa da lógica binária do “ele” e ”ela” como ”masculino” e “feminino”, e busca romper com a mesma. 

Quando falamos de “linguagem neutra”, as vezes também intitulada como “linguagem não-binária”, essa questão dos pronomes acaba ganhando contornos maiores devido a capacidade que tem em abranger uma quantidade genérica de formas de pronomes, desinências, flexões, e também porque pessoas com conjuntos de linguagem mais complexo, que mistura diferentes tipos de linguagens (essas, que são tidas como feminina, neutra e masculina) acabam não se enquadrando nesses conceitos de linguagens de gênero, e  junto, suas regras e sistemas pré-moldados (o tal do “sistema elu” por exemplo, que são organizados para serem utilizados apenas de determinada maneira - a tal da concordância verbal e nominal - e muitas pessoas que o fazem, não o fazem por sentir que são masculinas, femininas ou neutras, tão pouco podem considerar que tais pronomes possuem tais gêneros. E se estamos os buscando novas maneiras de línguas também não faz sentido cobrar uma certa concordância.

Vocês sabem que a língua portuguesa possui uma história. Ela nem sempre foi a mesma de hoje, e nunca na verdade é a mesma de sempre. Em si a própria língua portuguesa é fruto de neolinguagem (assim como a homogeinização da linguagem científica) - uma vez que é classificada como neolatina. E foi assim, até se estabelecer como uma língua própria de fato. Uma boa parte dos pronomes da classe linguística românica ou neolatina que “criamos” ou já existem, ou já existiam, em outra língua ou em nossa própria. Outro clássico exemplo são as palavras “menine” e “menin” que para o português moderno não passam de invenções“pós-modernas”, enquanto no francês, dois termos bem antigos para “menina” e “menino” respectivamente.

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(Imagem: variações de pronomes atuais oficializados em línguas românicas, entre elas o português), retirada da wikipedia.

Verdadeiramente, gênero é algo muito pessoal, exceto os casos em que a linguagem atrelada ao gênero acabam se elevando à nível estrutural, como no caso do neopronome sueco “hen” reconhecido como um pronome neutro oficialmente em 2014 pela Academia sueca.  Entretanto, nem sempre “gênero” possui relação com feminilidade, masculinidade, ou neutralidade. Gênero é uma palavra polissêmica e portanto possui significados variados. Quando falamos de gênero em literatura por exemplo, estamos falando de coisas como romance, drama, ficção, ou não-fictício. Em biologia uma forma de unidade taxonômica que classifica grupos de espécies comuns entre si. 

Em um artigo para a Revista Ártemis, de 2019, Ana Lucia Pessotto descreve o que são algumas conclusões equivocadas e não-científicas sobre a distinção dual de gênero como critério de classificação em  línguas da classe indo-europeias, são elas 3: “[…]generalizar que substantivos terminados em ‘-o’ são masculinos e os terminados em ‘-a’ são femininos. Uma reflexão rápida sobre as palavras do Português nos traz exemplos como ‘poeta’, ‘planeta’ e ‘cometa’, todas terminadas em ‘-a’ e do gênero masculino; também ‘ponte’ e ‘cabide’, que não terminam nem em ‘-a’, nem em -o, mas em -e, e a que se atribui, respectivamente, gênero feminino e masculino […] O segundo equívoco é acreditar que feminino vs. masculino são a única forma de classificar substantivos. A estratégia de classificação dual de gênero não é a única, e muitas línguas sequer apresentam essa marcação. Línguas como o Coreano, o Japonês, o Turco, o Mongol, outras línguas sino-tibetanas e algumas línguas nativas norte-americanas não classificam as palavras em gênero, mas podem apresentar outras estratégias de classificação. Tiramos alguns exemplos de Câmara Jr. (1973). O Malaio utiliza o traço humano: há maneiras de marcar morfologicamente se a palavra designa um ser humano ou um animal de cauda, ou um objeto redondo. Algumas línguas Bântu têm vários gêneros com prefixos correspondentes, e classificam no mesmo grupo pessoas e “animais superiores”, separado de outros animais […]  O critério gênero é, então, só um entre tantos para classificar os substantivos, e também não pode ser confundido com a expressão do sexo ou do gênero quando se refere a pessoas, o que nos leva ao primeiro grande mal-entendido citado […] que o gênero gramatical corresponde ao sexo.”  (Língua para todes: um olhar formal sobre a expressão do gênero gramatical no Português e a demanda pela língua(gem) inclusiva, Revista Ártemis, vol. XXVIII nº 1; jul-dez, 2019. pp. 160-178)   

Quando falamos de gênero no campo dos estudos de identidade de gênero, temos duas coisas importantes para formação de identidades, primeiro, “qualidades de gênero”, que são na verdade adjetivos e substantivos que denotam características de gênero, e são os GÊNEROS em si, coisas como ambiguidade/ambíguo, feminilidade/feminino, e assim por diante, assim como temos os chamados “estados de gênero” como uma subcategoria dessas qualidades, que utilizam a linguagem dos estados físicos da matéria para explicar alegoricamente o modo como sentimos que nosso gênero se comporta; denotam como os gênero se comportam ou como são em sua forma - lembrando que gênero é algo muito abstrato, um fruto da nossa psique, um dado de informação processado pelos cérebro e armazenado em nosso subconsciente, assim por se dizer. E que posteriormente formarão identidades. E tendemos a pensar que a coisa se limita somente aos conceitos que são mais comuns. As pessoas geralmente não estão indo muito além de feminino, masculino, neutro… quando na verdade você tem coisas como ilusoriedade/ilusório, solidez/sólido, fluidez/fluído etc. Há, contudo, idiomas que chegam a ter 20 gêneros, como ocorre em muitos idiomas das línguas bantu, e, no outro extremo, idiomas em que não há gênero algum, como ocorre nos idiomas basco e húngaro.

Portanto gênero, sexo, identidade e língua são necessariamente 3 coisas muito diferentes, porque sim, elas muitas vezes estão sendo utilizadas de formas distintas e separadas. Um homem cis, barbudo e maromba as vezes vai utilizar “elu”, e vai se tratar no feminino como é comum na comunidade de pessoas dissidentes sexuais e de gênero, especificamente a comunidade gay por exemplo. E o termo “neolinguagem” aqui serve justamente para compreender e abarcar todas essas questões ao invés de simplesmente reduzirmos tudo à “linguagem neutra” e pintar a questão como “coisas de pessoas ‘trans’ não-binárias”. É necessário entendermos tudo isso pra que a gente possa discernir melhor que “linguagem neutra” é um termo muito complicado. Quem decide o que é neutro para mim? Sou eu, ou um grupo de pessoas que decidiram criar sistemas de linguagens específicos? Quem decide o que é neutro para mim? Como chegamos a esse consenso? Existe algum?

Moxe e seu passado não tão distante

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Moxe aqui é um trocadilho com moço, moça, moçe e muxe. Originalmente moxe é relativo à um povo indígena-hispânico da Bolívia. Muxe é uma identidade latino-americana específica do México.

Sempre que o assunto for neolinguagem, pode apostar, a pessoa do “não usem ‘x’ ou arroba porque…[insira algum senso-comum ou uma catástrofe social]!”, estará lá. E antes de pautar os motivos que nos levou a delimitar a neolinguagem dessa forma e à noção de que algumas são melhores e mais acessíveis do que outras, e como isso se trata de um vício normativo, um argumento muito fraco, e prejudicial para o próprio debate da neolinguagem e dos neopronomes, vamos fazer um tour pelos usos e desusos do “x”.

O uso da desinência “x” remonta desde os tempos antes de cristo já em línguas proto-indo-européias e semíticas, como o pré-grego e o fenício. À exemplos palavras como ‘látex’, ‘falx’, ‘clímax’, ‘tóxico’, ‘meninx’, ‘séptunx’ e ‘manx’ - não, não é de “mana” (risos). Segundo o dicionário Dicio “o ‘x’ se originou de uma letra utilizada pelos antigos povos semitas, que viveram na Síria e na Palestina. Semitas chamavam sua letra de ‘samekh’, que significava ‘peixe’. O desenho da letra era a adaptação de um hieróglifo, que representava um peixe. Mais tarde, os povos gregos adotaram a letra em seu alfabeto, e utilizaram-na para representar o som ‘qui’. Os povos romanos também utilizaram a letra ‘x’ para representar o som ‘qui’, mas modificaram ligeiramente seu desenho”.

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Na imagem, Meninx, um sítio arqueológico situada na costa sudeste da ilha de Djerba, no sudeste da Tunísia

No uso da história moderna, o ‘x’ como marcador se tornou algo muito mais corriqueiro, e acabou sendo estendido para formação de pronomes. Em inglês, a história dos usos e invenção de neopronomes que fogem do padrão “he/she” (ele/ela) é datado desde 1800 como observado em um estudo de 1996. Alguns bem conhecido como ‘ze’ (1972) e ‘s/he’ ( 1973) e já alguns bem estranhos para nós que nem falantes de inglês somos, coisas como ‘ir, iro, im’ (1888). Dentre esses novos-pronomes estão também o conjunto “xe, xem, xyr” (1993), que começou a ser amplamente usado por volta dos anos 2010, e cunhado por volta dos anos 90, assim como o conjuntos “xe, xir, xir, xirs, xirself“ ( 1998). 

O termo “womxn” em inglês - derivado de “woman”, que significa mulher - também carrega uma particularidade: o uso do ‘x’ como uma desinência. O termo data de 2010, e uma das coisas mais interessante sobre seu uso, é que além de  também se tratar de uma terminologia bem antiga, op termo foi cunhado por feministas interseccionais como uma proposta mais inclusiva, antinorma, queer, do termo “woman”. Na verdade a palavra do inglês para “homem”, “man”, assim como no português, era considerada neutra no inglês antigo, relativo à “humanidade”, “pessoa”, “ser-humano”. Nesse sentido no inglês arcaico, “wīfmann” significava “humano feminino”, enquanto “wēr” significava “humano masculino”. As palavras “wer” e “wyf” foram usadas, quando necessário, para especificar um homem ou uma mulher, respectivamente. “Wīfmann” progrediu para “wīmmann”, “wumman”, e finalmente, woman”. Além da palavra “womxn” também existe outras variações como “womyn”, que em seu uso feminista atual aparece pela primeira vez em 1976, em uma publicação referindo-se ao evento “Michigan Womyn’s Music Festival”.

É como se tudo que estamos fazendo desde os anos 70 parecesse relativamente próximo e novo, mesmo que muitas pessoas tente olhar pra esse passado como algo muito distante e velho. No contexto latino-americano e de línguas românicas, as coisas também não deixam de ser menos interessantes, identidades como muxe, bixa e androxine, como vemos em “womxn”, revelam mais uma variância no modo de uso do ‘x’ para além de seu uso neo-linguístico característico. É inegável aqui o quão marcante o ‘x’ tende a ser na medida que você compreende um berço de línguas e seus usos mais estranhos no sentido queer da palavra, como se não houvesse outra letra do alfabeto que suprisse tamanha força e poder de subversão, com exceção de raros usos e menções de ‘z’, ‘y’ e ‘w’, que são desinências bem menos utilizadas em nosso vocabulário português (à exemplo mozo, moza, e moze, do Asturiano). Nessa enorme bacia de línguas românicas, destacam-se alguns idiomas como o veneziano, galego, asturiano, e até catalão quando se trata do uso da grafia do ‘x’. Todas implementam o uso do ‘x’ no lugar de algumas letras para representar sons que não existem ou têm uma distribuição diferente em português, e que para nós falantes de português chega ser algo especialmente incomum. “Gènere” e “conèixer” (gênero e conhecer, em catalão), “androxinia” (androginia, em galego), “xêneru” (gênero, em asturiano), “xenar” (jantar, veneziano). O que não faltam são palavras. Em referência ao Galego temos o intrigante ensaio de Teresa Moure Queer-emos un mundo novo: sobre xêneros, cápusulas e falsas calssificacións” (2012, editora galaxia), uma releitura queer no contexto  da própria identidade em si, do masculino génerico e do poder subversivo do feminismo.

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Na imagem, Teresa Moure Pereira, pousando para foto com mão no rosto

Em seu estudo intitulado “Latinx Thoughs: Latinidad with an X”,  Juliana Martínez e Salvador Vidal analisam as possibilidades do termo latinx, apesar de não ser clara a origem do ‘x’ como uma desinência inclusiva no espanhol, francês, português ou mesmo no inglês, puderam constatar algumas curiosidades durante o estudo:

“Segundo pesquisadores, o termo já aparecia em fóruns online na década de 1990 e, em 2015, a palavra se popularizou entre acadêmicos, ativistas e nas redes sociais. Essa ascensão está ligada à habilidade que esse termo tem para incluir a diversidade sexual, étnica e racial dos povos latinos, e desafiar a cultura dominante e suas normas ao outorgar a “x” um gênero neutro, inclusivo” -  Goethe-Institut Kolumbien  (Hispano, latino, latinx - MAIS QUE SIMPLES RÓTULOS)

Outras pesquisas sugerem o primeiro uso conhecido do termo em 2004 segundo dados do Google Trends, entretanto o uso pode ter tido um outro sentido. No português assim como no espanhol o uso da desinência ‘x’ diferentemente do inglês e outras línguas se tornou muito mais comum pela quantidade de flexões e diferenciações de gênero que uma única frase pode conter em nossa língua. Mas seus usos se dão por motivos caminhos e meios que cominam em uma diferença cultural com o resto da américa do sul. O termo “latinx” por exemplo não é uma reivindicação comum no Brasil, mas sim considerada uma reivindicação hispânica. Enquanto no resto da América do Sul a luta a luta ela “lenguaje inclusiva” gerou uma forte aliança entre movimentos feministas e de raça, e aqui a gente pode cair no erro de generalizar, porém um fato é que diferentemente do Brasil o uso da desinência ‘x’ é algo muito mais recorrente e aceito entre esses movimentos, no Brasil cada dia mais no superamos em delimitar on uso dessa linguagem, tratada com escárnio, um empecilho. Claro, nem sempre foi assim, no português-br se destacam muitas palavras, dentre elas “todxs”, “meninxs”, “bem-vindxs”. No português particularmente a a palavra “meninx” destaca-se por um polissemia particular. Seus significados variam, pois a palavra “meninx” também é usada na medicina para se referir  a meninge. O uso se popularizou mais por volta do inicio de 2010, pela própria internet. Em uma notícia um tanto humorada publicada em 2009 no site TecMundo, o uso do ‘x’ como uma desinência recorrente na internet foi classificada como “internetês”:

“Para aqueles que não usam a internet com muita freqüência, ver palavras como “xou xiki” escritas na tela parece algo estranho. Estamos usando a língua do xis agora? Com o tempo você vai se acostumando e percebe que, pasmem, ainda é português![…] As expressões “axo e ixcrever” são também internetês, mas de um tipo diferente. O Miguxês é uma forma de expressão que “imita” a fala de uma criança, considerada meiga ou divertida. […] O certo e errado não existem quando estamos falando de língua portuguesa. Pelo simples fato que o que importa é o contexto no qual estamos inseridos. Escrever na internet com o estilo da “Ilíada” não funciona. Da mesma forma que não se deve IxCrEveR aXiM na prova de português ou no currículo, pois é nota baixa e desemprego na certa! ” - (Como está o seu internetês? Conheça a linguagem utilizada no mundo online, TecMundo 2009 )

Nessa notícia podemos observar como o uso do ‘x’ genérico possui relação direta com os espaços virtuais. E ainda que não seja muito debatido ou estudado quando se deu esse emprego do ‘x’ como ideal de “linguagem neutra” ou “inclusiva” no português, seu uso pode ser datado de meados dos anos 2000 pra frente, principalmente na internet, assim como no espanhol e outras línguas românicas. Não raramente você encontrava palavras como “vcx”, “todx”, “amigx”, entre outras como podemos ver em bio de blogs e alguns textos aqui citados desde do início da década, principalmente em espaços de ativismo virtuais feminino, libertário, anarquista e feminista [1][2][3][4][5][6][8][9][10]. 

Como também podemos observar, durante a transição dos anos anos 2000 pra 2010, especificamente de 2009 à 2012, o uso da desinência ‘x’ como escrita genérica, ou “internetês”, desaparecendo e dando mais lugar ao ‘x’ neutro. Esse uso pode ser mais encontrado em escritos feministas durante essa fase [11][12] -  tendo em vista de que feminismo aqui não é só binário ou cisgênero. Já entre 2012 e 2013 começam a aparecer as principais críticas, tanto no português como no espanhol [13]. No português acaba se destacando o famigerado texto de Juno Cipolla “Deixando o X para trás na Linguagem Neutra de Gênero” (2013) a crítica que ressalta o quão excludente o “x” e o arroba podem ser e oferece outras alternativas tidas como mais inclusivas e verdadeiramente neutras, tendo em vista que “verdadeiramente” aqui seria uma linguagem mais prática, pronunciável, agradável. O que Juno não pode prever foi as implicações normativas que sua fala poderia acarretar e em suas chamadas construções e moldes de uma neolinguagem “daora”…

Sujeito indeterminado e oculto: “não posso pronunciar, nem ler, nem ver, nem quero”


Os pilares de sustentação da crítica ao ‘x’ se baseiam principalmente na tese de que o ‘x’ como uma consoante não reproduz o mesmo papel que as vogais e portanto como tal não pode ser vocalizado, além de suspostamente complicar a leitura, a comunicação e a escrita para diversos tipos de pessoas e etc. A construção dessa crítica na verdade possui diversas falhas e equívocos, de ordem até bastante fundamental. Primeiro que a letra ‘x’ como qualquer letra de nosso alfabeto é passível de vocalização nos mais diversos tipos de níveis e palavras. A questão é sobre como empregamos o ‘x’, e não que “o ‘x’ não possa ser possível de ser empregado” ou que de modo paralelo estamos tentando imitar as vogais. Como indica o estudo de Ana Lucia Pessotto, fazendo com que muitas palavras como “todxs”, sejam consideradas ilegíveis ou nada passíveis de vocalização“[…[as regras fonotáticas do português-br não permitem um encontro consonantal com mais de duas consoantes na mesma sílaba e fundamentalmente exigem uma vogal como núcleo de sílaba.”

No entanto se queremos uma nova língua e estamos buscando meios pra isso, ainda dentro do nosso idioma, não há garantia de que a mesma irá obedecer qualquer regra que seja ou forma de linguagem pré-estabelecida pelo sistema vigente, pois as regras desse sistema justamente já foram desafiadas a partir do momento que estamos buscando alternativas fora dela e contra ela, ainda mais nesse momento que o debate se tornou algo muito mais rigído, e então nos encontramos sufocadxs e sem saída. E se estamos buscando novas formas de linguagens em “lugares jamais explorados”, não há nada que nos impeça de criar novas fórmulas para essas regras e vice-versa. Então vamos espiar algumas propostas e soluções para o uso do ‘x’ no atual português.

Provavelmente você já ouviu dizer que “toda regra tem exceção”. E o que não falta no português são exceções. A ideia de que uma palavra possa ser impronunciável por determinada letra, na verdade é uma ideia estranha até mesmo para o português, como é o caso da letra muda. Letras mudas geralmente exercem o papel de ocultarem o som de uma letra ainda que ocupe um papel muito importante naquela palavra (história, madrid, hoje…). Agora pense por um minuto: se o fato do “x” não ser passível de vocalização é um problema, vamos considerar também todas as outras palavras com letras mudas como um erro também? Muitas das críticas quanto ao “x” se centram nessa premissa, mas em uma investigação pessoal fazendo tanto o uso de softwares de leitura dos mais diversos, quanto do meu próprio conhecimento acerca do uso dessa desinência, pude avaliar como o “x” realmente funciona na prática, e me choquei ao descobrir que na verdade os tais softwares de leitura interpretam e pronunciam o ‘x’ da mesma maneira que o ‘e’.

Seu uso se encaixa totalmente no conceito de letra muda. Aqui, o ‘x’ suprime a desinência, e a vogal, e acaba por reproduzir o som da penútilma letra como no caso de “amigx”, que ficaria “amigue” na pronúncia.  Isso se deve ao fato de na ausência de uma vogal (ou desinência vogal), o ledor interpretar a penúltima letra,no caso, a consoante ( “d” = “dê”). No fim é como não fazer uso de uma desinência em específico ao mesmo tempo que sim, ficando apenas “amig”, agindo como um marcador nulo. Aqui a reprodução do som “e” apesar de indireta contrasta com as mesmas críticas que insistem na versão de que ao invés do ‘x” usemos a desinência “e”. Nessa sequência de vídeos (clique encima) você pode ver na prática como foi a experiência. Se caso queira você mesmo fazer o teste procure por algum software de leitura como Google Tradutor ou acessando o conversor de texto em fala do seu celular nas configurações de acessibilidade, e teste algumas palavras como “amigx”, “bonitx”, e etc. Algumas palavras geralmente funcionam, outras não. Simplesmente.

Já o sujeito indeterminado e oculto é uma característica linguística que permite a não identificação ou demarcação de algo ou alguém em uma frase (semelhante ao ‘it’ em inglês). Enquanto o indeterminado não se sabe quem é ou ao que se refere especificamente, no oculto, apesar de não ser visto, já podemos ter uma breve noção do que e quem, mas não de maneira explícita, sempre entre flexões, ou na utilização de um prenome anterior por exemplo (”Seu cabelos [da pessoa] eram tão lindos”). De maneira paralela, o ‘x’ está apenas cumprindo seu papel de não demarcar algo à ninguém, presando sua maior qualidade, que é a de não ser assimiladx. São diversas as possibilidade do emprego do ‘x’ na língua, e devemos ter essa ideia em mente. Temos muito no que trabalhar quanto à isso claro, em desenvolvermos estratégias e maneiras mais eficazes de fazer com que softwares de leitura e as pessoas interprete da melhor maneira o uso desse ‘x’, e propor uma rota de ensino que dialogue com isso. É uma outra alternativa qualquer pra comunicação. Você pode escrever e falar. Não se trata da função da língua… porque novamente, o “x” ajuda comunicar igualmente, e ser uma forma inclusiva de não demarcar um gênero.

Pedagogia da exclusão e a popularidade de críticas rasas 

Não, o x não é a causa responsável pelo desmatamento na Amazônia ou a falta de saneamento básico em comunidades ribeirinhas. Das mazelas sociais do Brasil, muito menos dos índices de analfabetismo pelo país. Outra grande crítica observada contra o uso da neolinguagem no geral vêm de um mito social e da falta de compreensão da própria língua, da dinâmica da desigualdade em nosso país e das estruturas de poder e governabilidade, onde o ’x’, assim como “linguagem neutra”, são tratadas como coisas não acessíveis. Mas oras, desde quando a língua portuguesa é acessível não é? Desde quando pessoas PCDs, com baixa visão, mudas, pobres, marginalizadas que fazem o uso do braille, da libras, ou algum vocabulário e dialeto específico, fizeram parte da norma e se viram completamente abraçadas por esse sistema? 

Porque tanto o braille quanto a língua de sinais, as gírias, os dialetos, a informalidade, aqui, também são compreendidas como neolinguagem uma vez que surgem da necessidade da inclusão, das necessidade daquele grupo e por serem tão excluídas quanto, casos contrários estaríamos aprendendo libras e braille lá desde o primeiro ano do ensino fundamental e essas pessoas que depende dessas formas de linguagem não estariam a parte do ensino, nem mesmo da sociedade. Libras que inclusive já é uma língua neutra. Afirmar que o ‘x’ está errado porque não é pronunciável, é dizer que toda língua deva ser falada ou escrita, o que é ir contra a própria ideia de inclusão, uma vez que libras, não é falada, nem escrita. O braille? Tão pouco. É julgar a forma como pessoas pobres e marginalizadas se comunicam entre si e com a scoiedade. É nos privar de falarmos e escrevermos como queremos.

Quem se debruça em usar PCD de token para suas críticas descompensadas contra neolinguagem desconhece a própria realidade de pessoas PCD e de quem faz o uso de neolinguagem, uma vez que pessoas de baixa renda, PCDs, marginalizadas, e até em situação de rua ou acolhimento, também fazem uso dessas formas de linguagens. Pessoas com dislexia por exemplo, que são outras vítimas desses discursos abjetificantes, possuem problema com a língua comum em geral, não apenas com neolinguagem, e nem por isso essas mesmas pessoas críticas de neolinguagem que se mostram tão preocupadas com acessibilidade estão apontando para a língua portuguesa padrão como excludente. É onde a hipocrisia e a ignorância falam mais alto.

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Porque antes do ‘x’ vem a própria língua portuguesa, tendo em mente que os dados sobre índices de semi/analfabetismo pelo país não incluem formas de neolinguagem. Isso seria o mesmo que afirmar o quão excludente e desnecessária é a língua portuguesa. Porque milhões de pessoa não estão familiarizadas com a gramática, tão pouco são alfabetizadas. Porque milhares delas não a compreende e se veem excluídas delas. Por isso pensar na língua como responsável por todos esses problemas, é assinar o atestado de óbito de nossa própria língua e suas possibilidades. E entender sobre a historia do nosso governo e suas funções, ajuda evitarmos esse tipo de  equívoco, pois é entender que o motivo pelo qual o acesso a educação em nosso pais nunca foi algo democrático, é o fato de vivermos em uma sociedade desigual e injusta em que a educação é um privilégio de alguns.

Um fato aqui também muitas vezes ignorado é a questão do ensino. Pra haver um número maior de falantes de alguma forma de língua, primeiro é preciso antes como dito, educa-las. Pra educar, a gente ensina. Essas são noções básicas de pedagogia. E grande parte dos problemas referentes a neo-linguagem vem daí, já que não crescemos aprendendo a língua portuguesa para um uso inclusivo da mesma. E o que acontece é que as pessoas já querem sair por aí falando neolinguagem com total fluidez e naturalidade, como se elas tivessem crescido de fato aprendendo a falar “neutro”. Não estamos e nem fomos habituadxs desde criança a falar assim, e portanto como toda nova língua, novo idioma, devemos aprender a falar assim. 

Amor à norma-culta

Embora eu seja a pessoa mais suspeita para falar, na própria seção de comentários em relação ao texto de Juno “Deixando o ‘x’ pra trás” de 2013 - e não só, mas no dia-a-dia, em discussões - é perceptível o quanto o argumento do ‘x’ como um mal-aliado no debate sobre neolinguagem acaba não sendo lá muito frutífero ou oportuno na percepção do público comum. Isso porque as pessoas não estão buscando nenhum modo bonito ou “melhor” de usar neolinguagem, mas justamente motivos para não ter que usa-la. E na tentativa de simplificar as coisas e torna-las mais facilmente acessíveis ou pragmáticas - o que não é essencialmente algo ruim  - de maneira normativa, o tiro acaba saindo pela culatra na maioria das vezes. Porque as pessoas ao lerem esse texto, onde você objetivamente classifica um tipo de linguagem como algo que “não deu certo” pra elas é como crer que mesmo formas pronominais como “elu” , além de “ridículas” é algo que também jamais dará certo, já que uma coisa está sobreposta sobre a outra quando o assunto é neolinguagem.

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No entanto compreender que o debate em torno do ‘x’ é normativo, não é negar os pontos frágeis em torno do uso dessa desinência para uma língua tão complexa em gênero e acessibilidade. Claro, temos esses problemas. Também não é negar as portas que nos foram abertas através de contribuições como de Juno, que representa não só uma contribuição qualquer, mas uma contribuição histórica aliás, de alguém que esteve no início do movimento no Brasil falando abertamente e corajosamente sobre um assunto que pasmem, para aquele momento era sim algo completamente de outro mundo.

Pensar no ‘x’ como uma forma de identidade de ‘xênero’ (do galego, gênero), como xenogênero, como womxn, algo muxe, nos lembra como as críticas de repelimento ao ‘x’ se assemelham aos discursos anti-gênero. Sobre como o ‘x’ prejudica o debate sobre conversas de linguagem neutra, pessoas cegas e com baixa-visão, e todo uma gama de problemas alheio. É o mesmo problema quando se fala das milhares de identidades não-binárias do “tumblr” e como elas supostamente prejudicam a comunidade não-binária, não possuem materialidade ou história concreta. É o mesmo problema de como a comunidade NB atrapalha o movimento trans e suas demandas mais básicas como direito à vida e acesso à saúde, ensino, e moradia. É o mesmo discurso exclusionista e falso de como pautas “secundárias” atrapalham a esquerda e afasta o “trabalhador médio”, as classes menos favorecidas da esquerda política. 

O ‘x’ quando reivindicado pelo ótica de gênero e pelo viés antinormativo, demanda uma poderosa força de subversão da linguagem, e como tal se comporta de maneira que aos olhos da sociedade seu uso não pode ser tolerado, pois coloca em cheque tudo que há de mais problemático em nosso próprio sistema. Revela como as estruturas de poder que sustentam as bases de nossa sociedade estão cheias de falhas, apodrecidas, quando uma simples desinência pode pôr tudo à perder. E como toda estrutura apodrecida, uma hora desaba. 

“Também, a atitude de negação de toda e qualquer norma é ingênua. A língua, como antes afirmado, é inerentemente normativa, então, negar a existência da norma é negar a língua. A língua é memória, é história, é tradição, logo, norma. É a norma o filtro social da língua, o que a configura. A língua, contudo, não se reduz à norma, porque tem uma propriedade que lhe escapa: a criação, que é a propriedade que faz funcionar a fórmula novo uso + adoção + norma = língua em renovação. Por isso, a língua não é sempre a mesma, é outra a cada tempo.” (A norma linguística: conceito e características, de Marli Quadros Leite).

Então antes de qualquer acusação de estarmos sendo antinorma (que é diferente de ser anti-norma), de queremos destruir o português,  deixamos claro que sim, esse é o objetivo aqui: a desapropriação da língua, nos metendo nos processos naturais de transformação dela. Porque essa também é principalmente uma forma de reivindicação política. E que se achamos isso errado, é porque não compreendemos completamente como a língua funciona.

Texto por Dani Camel